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Enurese Noturna em Crianças (5-12 anos) - Orientação Clínica e Terapêutica

18 dez. 2025
Saúde
Comportamentos

Critérios Diagnósticos
A enurese noturna define-se como perdas involuntárias de urina durante o sono, em crianças em idade em que já seria esperado controlo dos esfíncteres (geralmente a partir dos 5 anos de idade). Para fins clínicos, costuma considerar-se enurese quando os episódios ocorrem com frequência significativa (pelo menos 2 noites por semana, por um período mínimo de 3 meses) em crianças ≥5 anos, ocasionando impacto na criança ou família. É importante diferenciar:

  • Enurese monossintomática primária: enurese noturna primária significa que a criança nunca atingiu um período prolongado de secura noturna (pelo menos 6 meses secos). É monossintomática quando não há quaisquer outros sintomas do trato urinário inferior – ou seja, a criança molha a cama à noite, mas não tem sintomas diurnos como urgência, perdas diurnas ou infecções associadas. Trata-se, na prática, de uma incontinência noturna intermitente em criança sem outras queixas urinárias.
  • Enurese não-monossintomática (polissintomática): define os casos em que além da enurese noturna existem outros sintomas urinários, tipicamente de disfunção miccional diurna. Por exemplo, a criança apresenta urgência (vontade súbita de urinar), frequência urinária anormal (aumentada >7 vezes/dia ou muito reduzida <3-4 vezes/dia), episódios de perda de urina diurna, jato fraco ou interrompido, necessidade de fazer força para urinar, sensação de esvaziamento incompleto, etc. Nesses casos, a enurese pode ser considerada secundária a uma alteração funcional subjacente (bexiga hiperativa, por exemplo) e a abordagem difere, devendo primeiro tratar os sintomas diurnos antes de focar o treino noturno.
  • Enurese secundária: refere-se à criança que já tinha atingido continência nocturna durante pelo menos 6 meses e posteriormente voltou a ter episódios de enurese. A enurese secundária sugere um fator desencadeante ou regressão após um período de controlo; é importante investigar potenciais causas orgânicas (por ex., infecção urinária, diabetes mellitus) ou psicossociais (stress, alterações no ambiente familiar) para direcionar o tratamento.

Resumo: enurese noturna primária monossintomática é o quadro mais comum (criança ≥5 anos que sempre molhou a cama à noite, sem sintomas diurnos). Já a enurese não-monossintomática implica sintomatologia urinária diurna concomitante, e a secundária implica recaída após um período seco. Estes critérios diagnósticos ajudam a estratificar a avaliação e terapêutica, conforme detalhado a seguir.

Avaliação Inicial na consulta
Uma avaliação clínica minuciosa é fundamental para confirmar o diagnóstico de enurese, distinguir entre enurese primária vs. secundária e monossintomática vs. não-monossintomática, e excluir possíveis causas orgânicas ou comorbilidades que exijam abordagem específica. Os componentes da avaliação incluem: história clínica (anamnese detalhada, caracterização dos episódios noturnos, presença de sintomas urinários diurnos, hábitos intestinais e sinais de obstipação, padrão de ingestão de líquidos, padrão do sono, desenvolvimento neuropsicomotor e comportamental, história familiar, avaliação psicossocial, exame físico completo). O exame físico serve para excluir causas orgânicas. Na enurese primária monossintomática típica, o exame não revela alterações significativas. Se o exame for anormal (p.ex. detecção de massa abdominal, anomalia neurológica ou sinais dismórficos lombossacros), a avaliação deve prosseguir com exames complementares direcionados e eventual encaminhamento especializado.

Exames laboratoriais de triagem: urina tipo II (análise sumária de urina), urocultura, glicemia e outros exames, exame de fezes e parasitológico. Existem critérios para exames complementares (imagem/função): ecografia renal e vesical, urofluxometria com eletromiografia do pavimento pélvico, estudo urodinâmico completo, polissonografia, outros exames.

Em resumo, a avaliação inicial concentra-se em história e exame completos e urinálise, visando distinguir enurese funcional de situações orgânicas. Exames complementares avançados são reservados para casos atípicos ou refratários, ou quando a história/ exame aponta para algo além de enurese funcional.

Fatores de Risco e Comorbilidades
Vários fatores predisponentes e condições associadas estão ligados à enurese noturna, seja como causa contribuinte ou comorbilidade que agrava o quadro. Conhecer esses fatores auxilia na abordagem integral da criança: história familiar (predisposição genética), sexo masculino, maturação neurológica e do sono, noctúria e poliúria noturna, capacidade vesical funcional reduzida, obstipação (prisão de ventre), TDAH (Transtorno de Défice de Atenção/Hiperatividade) e outros transtornos neurocomportamentais, distúrbios do sono (Ressonar e Apneia Obstrutiva do Sono), encoprese (incontinência fecal), fatores psicossociais e emocionais, outros problemas médicos.

Em resumo, história familiar, sono profundo, imaturidade vesical, obstipação e algumas condições neurocomportamentais (como TDAH) são os fatores de risco/comorbilidades mais frequentemente associados à enurese noturna. A identificação e gestão desses fatores - por exemplo, tratar obstipação, remover amígdalas aumentadas, gerir o TDAH - muitas vezes é necessário para o sucesso terapêutico. Além disso, entender essas associações ajuda a educar os pais de que a enurese pode ter múltiplas dimensões e não se trata de “preguiça” da criança.

Orientações Terapêuticas
O tratamento da enurese noturna deve ser individualizado, considerando a idade da criança, subtipo de enurese, frequência dos episódios, motivação da criança e família, e presença de comorbidades. Em linhas gerais, recomenda-se iniciar com abordagens comportamentais e medidas de apoio, evoluindo para terapias de alarme e, se necessário, tratamento farmacológico. Intervenções mais intensivas ou combinadas são empregadas conforme a resposta. Importa referir que muitas crianças apresentam melhoria espontânea ao longo do tempo (taxa de resolução natural em torno de 14-15% ao ano); contudo, não se deve “esperar indefinidamente” quando a enurese já causa impacto emocional – a partir dos 6-7 anos, se a criança manifesta desejo de ficar seca ou se a situação afeta a família, justifica-se tratamento ativo. Abaixo, as recomendações atualizadas:

Medidas comportamentais e treino vesical
Este é o pilar inicial de qualquer plano terapêutico, tanto para enurese monossintomática como polissintomática. Mesmo quando se introduzem outras terapias (alarme ou fármacos), as medidas comportamentais devem ser mantidas, pois potencializam o sucesso e reduzem recaídas. São intervenções seguras, sem efeitos adversos, e empoderam a família no cuidado. É importante acompanhar a família durante esse período para ajustes e incentivo, já que resultados podem levar tempo. Uma boa comunicação e expectativas realistas ajudam a manter a adesão.

Alarme de enurese (dispositivo de alarme noturno)
Trata-se de um dispositivo eletrônico que deteta a humidade (usualmente via um sensor colocado na roupa interior da criança ou em lençol especial) e emite um som/alarme vibratório ao primeiro sinal de urina, com o objetivo de despertar a criança e fazê-la interromper a micção, condicionando-a a longo prazo a reconhecer a sensação de bexiga cheia e acordar antes de molhar a cama.

Farmacoterapia
O uso de medicamentos no tratamento da enurese noturna é indicado em alguns cenários:

  • Quando as medidas comportamentais (e eventualmente o alarme) não surtiram efeito suficiente. 
  • Quando é prioritário conseguir alívio rápido dos episódios (ex: a criança vai para um acampamento ou colónia de férias e deseja-se evitar ao máximo as noites molhadas). 
  • Quando a família ou a criança não conseguem aderir ao alarme (por limitações práticas, sono extremamente pesado que impede despertar mesmo com alarme, ou simplesmente preferem tentar primeiro medicação). 
  • Como terapia adjuvante a outras medidas em casos parcialmente responsivos.

Seguimento e Monitorização da Resposta
A gestão da enurese é um processo que se desenrola ao longo de semanas a meses. Um seguimento cuidadoso permite avaliar a eficácia das intervenções, apoiar a família e fazer ajustes conforme necessário.

Orientações para Comunicação com a Criança e os Pais
A forma como os profissionais de saúde comunicam o problema e envolvem a família é decisiva no manuseamento da enurese. A comunicação deve criar um ambiente de aliança terapêutica: médico, pais e criança trabalham juntos, com compreensão e paciência, para alcançar o objetivo de noites secas sem traumas psicológicos. Reforçar sempre a mensagem principal: a enurese noturna é um problema comum, benigno e tratável, que não define o valor da criança, e que com suporte adequado ela irá superar esta fase.